1/06/2015

UMA QUESTÃO DE IDENTIFICAÇÃO



Observa-se várias formas de expressão artística. Algumas se encontram mais acessíveis como o grafite, disponíveis nos muros da cidade para quem quiser ver; outras, são pinturas, gravuras, esculturas que tem um caráter mais restrito, são encontradas geralmente em locais privados, ou em espaços próprios para exposição. Há ainda, demonstrações artísticas que se revelam a partir da escrita em textos literários que se dividem em gêneros tais como: as poesias, os contos, as crônicas, as ficções etc. 
 
De tempos em tempos, diante dessas várias demonstrações artísticas nos deparamos com questionamentos que visam estabelecer ou criar parâmetro para a categorização dessas formas de expressão. De um lado, a arte sendo utilizada em um sentido mais geral para qualificar um tipo de ocupação profissional na sociedade. Diz-se artista, aquele que trabalha com algum tipo de arte. O cantor de funk, o ator, o escritor, o grafiteiro, o artesão e todos aqueles que de algum modo lidam com um tipo de atividade diferente das funções tradicionais, são consideradas pessoas que fazem arte, e por isso, artistas. Em alguns casos, profissionais como o administrador, o advogado, médico etc, também possam ser considerados artistas quando em suas funções, extravasam aquilo que se espera deles. Por outro lado, temos um sentido de arte, utilizado para se referir aquilo que chamam de “arte mesmo” (com muitas aspas!). É um sentido que ouvimos as pessoas utilizarem quando se referem a manifestações artísticas consideradas “clássicas” como  literatura, pintura,  musica, sendo que, nesse tipo de referencia não haveria espaço para o alternativo, ou aquilo que é ou está fora dos padrões estabelecidos. Assim, gêneros musicais como o funk ou o pagode, e ainda, expressões artísticas como o grafite estariam fora dessa categoria por não serem consideradas representantes de uma “verdadeira arte”. 
 
Talvez seja importante se questionar sobre o que será que está em jogo quando utilizamos um discurso desse tipo? O que estamos considerando arte para falar dela dessa forma, sob esses parâmetros? Percebe-se que existe um sentido de arte que é utilizado quando se trata de manifestações e expressões artísticas e outro quando se trata do conceito de arte. A impressão que se tem é que um dos sentidos admite liberdade e criação e o outro não, pois estaria condicionada a modelos e padrões estabelecidos. Será que quando falamos de modelos e padrões estabelecidos ainda estamos falando de arte ou estamos falando de outra coisa?

No meu entendimento, a arte é expressão de liberdade e criação. Toda arte fala de uma verdade que eu não preciso concordar. Só preciso me identificar ou não com ela. Essa verdade, ao meu ver só pode ser dita pela arte, e ela fala de algo que está ali, na sociedade, no mundo, mas que não está ali para o ouvido de todos. Se algumas musicas chocam, escandalizam e revoltam, provavelmente, elas não fazem por acaso.  Ninguém se afeta com algo que não tem importância ou significado. A arte muitas vezes incomoda, e talvez, o incômodo seja justamente o que se pretende. Não nos afetamos ou nos incomodamos com qualquer coisa. Nos incomodamos e nos importamos com coisas especificas. Quando um tipo de expressão artística provoca muitas críticas, talvez seja porque não queremos ouvir aquilo que ela diz.  Por isso, entendo que ser artista é se doar. Doar-se no sentido de se oferecer como sujeito a encarnar esse discurso de liberdade. O artista se oferece como corpo para que a arte possa falar.  É uma entrega pois de algum modo, o artista se lança aos olhos do outro como um objeto a partir de sua produção. Partindo-se do pressuposto de que a arte não fala aos ouvidos de todos; de que nem todos querem ouvir o que a arte tem a dizer, e ainda, que nem todos gostam do jeito que a arte se expressa;  o artista enquanto sujeito produtor da obra, doa seu corpo às críticas e aos elogios. Sustentar essa posição de porta voz, não é nada fácil.  A obra fala do artista,  mas fala também daquilo que está no mundo e precisa ser dito por alguém.  

Talvez a recepção da obra de arte seja uma questão de se identificar ou não com aquilo que se diz pela obra. Quando canto, canto uma música que a mim faz sentido, embora não faça sentido para outros. Dessa experiência, não preciso que outros façam parte. Ao meu ver, a maior contribuição que a arte pode oferecer é a possibilidade de nos compreendermos a partir de um outro discurso que não o da racionalidade. Se para ouvir uma determinada música eu precisar de permissão ou reconhecimento de outros para isso, posso considerar que tem algo acontecendo e que eu preciso me atentar para isso.

Autora: Glenda Almeida Pratti